terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Dias Grandes

Foto: João Costa/Fotaçor
Os dias de Romaria são grandes. Grandes em duração, desde as três da manhã às dez da noite; grandes também em tempo porque cada momento concentra memória interpretada do passado, a oportunidade sempre única do presente e a projecção expectante do futuro. É como se a escala do tempo tivesse profundidade e âmbito em cada instante concentrando ali todo o infinito. Na verdade, como nos sugere o Padre Dinis conseguimos caminhar para o infinito porque cada momento é potencialmente infinito.
O espantoso do mistério da criação do Homem é que esse “infinito instante” é concretizado em cada um dos nossos gestos, atitudes e palavras. Mas como é que podemos concentrar todo o infinito num só gesto, numa só atitude ou numa só palavra? Concentrar o Mundo num só grito, como nos diz Florbela Espanca na canção de Luís Represas? A poetisa sabe como é, e diz! “É amar-te assim perdidamente, é seres alma e sangue e vida em mim, e dizê-lo cantando a toda a gente!”
E se pusermos a devida maiúscula nesta maravilha começamos a compreender o drama feliz do mistério. “É amar-Te assim perdidamente, é seres alma e sangue e vida em mim, e dizê-lo cantando a toda a gente!”. E a maravilha é que a maiúscula pode ser minúscula porque no instante infinito do gesto de amor Deus é o outro.
Tudo isto parece bonito e poético quanto baste, mas como é que é possível concretizá-lo todos os dias. Ao longo de meia romaria fomos conversando com uns com os outros e percebendo melhor as ideias que nos são dadas de Graça.
Primeiro, ajuda muito rezar. O Padre Dinis disse-nos para orar dialogando com Deus para além de rezar dizendo Avé-Marias e Pai Nossos. Mas o silêncio do não discernimento imediato, a amargura da confusão distraída da nossa mente e a presença exigente da nossa liberdade fazem-nos fugir para a reza fácil e trauteada, ao som batucado dos passos e com o cenário holliwoodesco de uma paisagem bonita. E a verdade é que essa reza trauteada dá sinais de nos ir protegendo contra o que pensamos ser pecados mais graves ao mesmo tempo que nos abre janelas momentâneas de felicidade. E o mundo parece correr nesta rotina bem comportada e tendencialmente moralista do pedir sem escutar. Tudo parece direitinho assim, e até a criação sociológica do mundo, como o entendemos - com pais, irmãos, mulher, amigos e colegas, companheiros de equipa e compatriotas – parece ser conforme esta recomendação elementar da reza sem oração.
No entanto existem todos os outros. Aqueles que referenciamos com facilidade para exemplificar julgando os sinais da nossa moralidade limitada e julgadora. Pelo menos foi assim que, com o tempo de um burro, entendi o aviso que me deram dizendo que “as referências são tramadas” e que, perante a minha estupefacção defensiva, que “temos que aprender as lições da humildade”.
Tramado é o orgulho, percebi mais tarde; esse que, supostamente, nos dá a identidade que nos constitui e nos dá pertença, mas que efectivamente ofende e distancia os outros. Mas como é possível viver sem esse orgulho que julgamos constitutivo e essencial? Ou, dito de outra maneira, como é possível viver com humildade e, ao mesmo tempo, ... dizê-lo cantando a toda a gente?
Da conversa que tive com o Padre Dinis ao longo do caminho que vai de São Sebastião até à Barraca pareceu-se entender duas coisas. No mundo passam ambos pela relação com os outros. Por um lado na assunção da obediência, percebendo como as crianças o fazem que é essa obediência que nos aumenta a liberdade. Mas é difícil ser-se adulto e ao mesmo tempo criança e obediente. Por outro lado pelo entender daqueles que nos criticam e aparentemente não gostam de nós. Afinal de contas são os que são feridos e se sentem e reagem contra o nosso orgulho. Se entendermos isso e se perdoarmos, talvez consigamos ser mais humildes sem deixar de dizer cantando a toda a gente.
(artigo publicado no "A União" na Segunda-Feira, dia 25 de Fevereiro de 2008, por Tomaz Dentinho)

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